terça-feira, 23 de dezembro de 2008

campo de flores

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram de mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
… visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

em outros escritos...

“As pessoas, feitas de milho fazem o milho. As pessoas, criadas da carne e das cores do milho, cavam um berço para o milho e o cobrem de boa terra e o limpam das ervas daninhas e o regam e dizem a ele palavras de amor. E quando o milho está crescido, as pessoas de milho moem sobre a pedra e o erguem e o aplaudem e o embalam no amor do fogo e o comem, para que nas pessoas do milho o milho continue caminhando sobre a Terra, sem morrer.”

(GALEANO, Eduardo. Janela sobre os ciclos)

"Vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha a erva a crescer em redor de seu corpo, para o seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que se ergue em suas patas para andar sobre o dorso. E cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará, quando for tempo."

(GULLAR, Ferreira. O boi)

Escritos que dialogam.


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha amesquinhar, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir à minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco."

Gabriel García Márquez, Memória de minhas putas tristes.

...

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

una canción para mi

Preta que colhe quem planta,
Me espreita que eu preto o mundo.
Sou aquela planta preta, Preta.
Esperando o teu Regar.
Preta me leva pro escuro...
Preta me faz apagar...
Preta me faz de teu bem,
Preta me colhe também...

...eu era aquela sementinha preta...

(Tonfil)

Ton, tão bom ter você na minha vida. Uma luz, aquela luz do sol, que a folha tr....

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

volver a los 17

Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
es como descifrar signos sin ser sabio competente
volver a ser de repente tan frágil como un segundo
volver a sentir profundo como un niño frente a Dios
eso es lo que siento yo en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando
como en el muro la hiedra
y va brotando, brotando
como el musguito en la piedra
como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Mi paso retrocedido cuando el de usted es avance
el arca de las alianzas ha penetrado en mi nido
con todo su colorido se ha paseado por mis venas
y hasta la dura cadena con que nos ata el destino
es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.
Se va enredando, enredando
como en el muro la hiedra
y va brotando, brotando
como el musguito en la piedra
como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saberni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento
todo lo cambia al momento cual mago condescendiente
nos aleja dulcemente de rencores y violencias
solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.
Se va enredando, enredando
como en el muro la hiedra
y va brotando, brotando
como el musguito en la piedra
como el musguito en la piedra, ay si, si, si.

El amor es torbellino de pureza original
hasta el feroz animal susurra su dulce trino
detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros,
el amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño
y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero.

(Violeta Parra)

Descobri essa música no cd do Milton Nascimento (o Geraes). Ela é uma linda canção, sua letra diz muito! Milton e Mercedes Sosa cantam isso lindamente.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

prólogo

[...]Hoje sabe-se muito cada vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Se não passássemos de indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias. Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da Natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres humanos o espírito adquiriu forma, em cada um deles a criatura padece, em cada qual é crucificado um Redentor.
Poucos são hoje os que sabem o que seja um homem. Muitos o sentem e por senti-lo, morrem mais aliviados, como eu próprio, se conseguir terminar este relato.
Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mas mentir a si mesmos.
A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode, Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos ou formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é um impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns: as mães; todos proviemos do mesmo abismo , mas cada um - resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial - tende a seu próprio fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se.

(Prólogo do livro Demian, de Herman Hesse.)

Essa semana esse livro me foi lembrado em uma conversa. Bastante significativo para mim.

domingo, 31 de agosto de 2008

olho as minhas mãos

Olhos as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras!
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheiros de esperança e medo, Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação!
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos?
Quem faz - em mim - esta interrogação?

(Mário Quintana)

Dos meu prediletos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

"Meu filho,
Você é um ser.
Existe na mediado do mundo.
É pouco.
O mundo é a constatação da realidade exterior que te cerca.
É a tua medida inicial.
É o teu começo, mas não o teu fim.
É o chão da tua expressividade, pois você é um ser vertical.
Para cima do chão há o "invisível".
Você pode olhar os seus pés, mas não a sua própria imagem.
Esta você a percebe.
Na verticalidade está a medida da sua procura.
Quando você aceita a simples constatação da vida, aí sim, será o seu começo.
O primeiro sentimento será de perda pois tudo que cai na constatação é vivido como ganho.
Tudo adquirido como perda até a integração absoluta do "o percebido" no seu inteiror,
é a própria dinâmica da vida: perde-ganha.
Quando você se sentir no mais absoluto desespero você está sendo salvo.
Solte e aceite a tua intuição que te levará a uma aparente solução - solução esta sempre provisória.
Aceite o provisório, pois jamais o processo pode parar.
A vida pode vir a ser uma realidade extraordinária, desde que você esteja voltado para sua procura interior.
Não há realidade independente do o "interior de si".
Desconfie das coisas claras, a pureza é descoberta dentro da maior conturbação de um crise. É o ponto luminoso dentro da maior escuridão.
O teu corpo, meu filho, é o veículo da tua vivência.
Não o impeça de florir por nada. Cuide dele como você cuida do teu carro,
Toda a tua riqueza interior vai suá-lo, sujá-lo, e até sangrá-lo.
Quando ele estiver gasto externamente você mesmo estará mais inteiriço e completo interiormente.
Você o despirá um dia como a crisálida deixa o casulo.
Ai de você se neste momento você é ainda o início não elaborado, pois aí você vai saber que esteve permanentemente morto em vida."

(Carta de Lygia Clark para seu filho, 1970)

Essa carta é muito rica. Tenho uma na primeira gaveta do meu criadomudo. Sempre que necessário, recorro a ela.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008


Sentados à beira do rio, dois pescadores seguram suas varas à espera de um peixe. De repente, gritos de crianças trincam o silêncio. Assustam-se. Olham para a frente, olham para trás. Nada. Os berros continuam e vêm de onde menos esperam. A correnteza trazia duas crianças, pedindo socorro. Os pescadores pulam na água. Mal conseguem salvá-las com muito esforço, eles ouvem mais berros e notam mais quatro crianças debatendo-se na água. Desta vez, apenas duas são resgatadas. Aturdidos, os dois ouvem uma gritaria ainda maior. Dessa vez, oito seres vindo correnteza abaixo. Um dos pescadores vira as costas ao rio começa a ir embora. O amigo exclama: - Você está louco, não vai me ajudar? Sem deter o passo, ele responde: - Faça o que puder. Vou tentar descobrir quem está jogando as crianças no rio.

(Lenda indiana)

Ao ler essa lenda percebi que ela remete mais ou menos à função na sociedade que eu pretendo exercer
.

sábado, 23 de agosto de 2008

leminski, p.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

metáfora literária

Era um homem velho e solitário que passava a maior parte do tempo na cama. Corriam boatos de que tinha um tesouro escondido em casa. Certo dia apareceram alguns ladrões: vasculharam tudo e encontraram um baú no porão. Arrastaram-no para fora e, ao abri-lo, viram que estava cheio de cartas. Eram as mensagens de amor que o velho recebera no curso de sua longa vida. Os ladrões iam queimar as cartas, mas, conversando a respeito, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana. Desde então, todas as segundas-feiras ao meio-dia, o velho ficava esperando o carteiro aparecer. E logo que o via, o velho voava ao seu encontro; o carteiro, que sabia de tudo, entregava-lhe a carta. E até São Pedro podia ouvir o pulsar daquele coração, ensandecido pela ventura de receber uma mensagem de mulher.

(Eduardo Galeano, em Livros dos Abraços)

Uma síntese da sensação que a literatura provoca em nós!

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

sem as plumas, numas.

Há muita coisa ainda a dizer.
Há muita coisa ainda a fazer.
Há muita coisa ainda a querer.
Há muita coisa ainda a viver, pra morrer.
Há muita coisa ainda a surgir.
Há muita coisa ainda a cantar.
Há muita coisa ainda pra ir.
Há muita coisa em qualquer lugar pra notar.

Riam, chorem , sonhem, soltem as asas
Sem as plumas, numas.

(Secos e molhados)

quarta-feira, 13 de agosto de 2008


"Yo quisiera... poder hacer lo que me de la gana detrás de la cortina de "la locura". Así: arreglaría las flores, todo el día, pintaría el dolor, el amor y la ternura, me reiría a mis anchas de otros, pero sobre todo me reiría de mi. Construiría mi mundo que mientras viviera seria mió y de todos..."

Frida Kahlo